Os outros 2
pilares, que são: nosso dever de fazer a beneficência/evitar a maleficência e
a aplicação do princípio de Justiça, estão mais sedimentados, ao
empregarmos nosso ofício, comparativamente com a prática do gerenciamento das autonomias
tão buscadas.
Sabe-se que
a autonomia está ligada a uma onda social,
cada vez mais observada nas sociedades modernas, que é o de ter a liberdade de
escolher o que querer e o que fazer. O cidadão do mundo atual quer, cada vez
mais, asas para voar. Daí, na prática médica, o paciente querer saber porque
fazer, como vai ser feito, quando não, o “por que que aconteceu a doença?” ou o
mal clínico.
O médico
tem hoje um grande concorrente que é o jocosamente apelidado “doutor google”,
somado a serviços de consultas online (pagas, hein?) que mais parecem uma
picaretagem de nível não classificável. Esquece-se que o profissional médico
leva de 10 a 12 anos para sê-lo em bom nível. No entanto, o cidadão se informa
em áreas da internet e acha-se apto a discutir uma condição clínica ou conduta
médico/cirúrgica.
O senso de
liberdade, natural e mais aguçado no Homem moderno, é, então, um traço que o
imprime a robustecer seu poder de autonomia. Assim como, conduzirá as decisões tomadas
pelo profissional, deverem ser cada vez mais compartilhadas com o paciente e/ou
sua família. É uma trilha interessante: querer ser livre para escolher, achando
que sabe de tudo, querendo opinar (compartilhar) sobre a conduta a ser tomada
pelo profissional (que também tem sua autonomia).
Isso veio
incrementar tremendamente a responsabilidade do médico de hoje, mormente, nas
atividades cirúrgicas ou instrumentadas.
E o outro
lado da autonomia: a do médico? Se muito
antigamente ele tinha total domínio dessa relação biunívoca (médico/paciente),
lastreada numa confiança sagrada, herdada da tradição Hipocrática de serem
verdadeiros semideuses, isso já não existe mais. Pelo menos, na intensidade dos
antigos tempos. Apesar de haver certo respeito ao profissional, ele já não tem
“carta branca” para decidir sem ser constantemente cobrado. Entretanto, não
deixa de ter reservada, ética e bioeticamente, a sua autonomia para exercer a
profissão.
Outra grave
questão, que tenderá a ser gravíssima em futuro próximo, é o nível de formação
e a qualidade do profissional da Medicina. Para se calcular, basta imaginar que
há 50 anos existiam no Brasil 26 a 30 escolas médicas, passando de cento e
poucas há 1 ano e, hoje, já se contabilizando mais de 300 faculdades de
medicina.
Sem quórum de Mestres suficientes, não é
difícil imaginar que a qualidade, lamentavelmente, irá deteriorar, mercê da
irresponsabilidade dos últimos 15 anos do Governo Federal.
E, agora, a questão mais preocupante: vamos
estar assistindo pacientes cobrando soluções, dentro do seu perfil de autonomia
como ficou desenhado, buscando compartilhar decisão de conduta com
profissionais de níveis inferiorizados e submetidos a uma pressão de cobrança
cada vez maior.
Daí começam já surgirem exemplos em
ambientes de alto nível de serviços. A Folha de S. Paulo, na edição de 26 de
Dezembro, traz matéria que espelha algo relacionado a isso.
O novo presidente do Hospital Israelita
Albert Einstein, Dr. Sidney Klajner, que é um gastro cirurgião de 48 anos, tecnicamente
bem qualificado, vai mudar o sistema de decisões de condutas dos profissionais
no hospital. Por especialistas que sejam, as decisões de condutas terão que ser
compartilhadas por equipe de médicos, antes que tomadas individualmente pelo
executor.
Por que razão? Dentre várias, uma é o
encarecimento do custo hospitalar que ora acontece, motivado por condutas que
se seguem com complicações gerando reinternações, re-intervenções e
agravamentos, difíceis (e caros) de serem controlados. Isso num meio que
envolve mais de 8.000 médicos lá cadastrados, apesar do gabarito da
instituição, cujo controle da qualidade profissional é refinado, mas já se
torna dificultado.
Propõe Dr. Klajner usar
de uma ferramenta moderna de compartilhamento de decisões de conduta, que é a
Medicina Baseada em Evidência, que estaria, então, a serviço não só de
satisfazer, devidamente, ao paciente/família, como também da Instituição
prestadora dos serviços, junto aos seus profissionais atuando, assim, de forma
colegiada nas decisões.
É um exemplo que parte de onde jamais
fosse possível imaginar, mercê do gabarito institucional alcançado pelo Hospital
I. Albert Einstein. Aliás, é uma atitude responsável, corajosa e exemplar para
o resto do país, onde se imagina o que pode estar acontecendo em função da
degradação dos recursos aplicados em nossa saúde pública. Sem lembrarmos que
estão por aí médicos cubanos e outros, com barreiras de relacionamento que vão
além da linguística, usos e costumes.
Enfim, continuará tendo
importância a Autonomia como princípio bioético aplicável? É claro que sim.
Trata-se de uma conquista da civilização. Somente que será um atributo a ser
fiscalizado na atuação do profissional da Medicina, como tem sido “balisado” ou
até freado nas exageradas exigências do cidadão/paciente. Sinal dos tempos:
mescla de gerações BB (Baby Boomer), X, Y, e Z convivendo e se entendendo (ou procurando
se entender).
Vale meditar sobre essa
preocupação em rota, observando que, caracteristicamente, isso tem um evoluir
quieto, silencioso e bastante perigoso.
Dr. Fauze José Daher
Gastro-vídeo-cirurgião
da Santa Casa de Barretos
Mestre
em Cirurgia pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP)
Advogado
– OAB(SP)