terça-feira, 14 de março de 2017

Medicina diversificada, prática médica moderna e um gargalo atual

              A medicina moderna, na visão do cirurgião americano Atul Gawande carece de uma revisão de postura do médico da modernidade.
Em artigo interessante publicado no matutino The New Yorker (The heroism of incremental care), esse competente Professor de Cirurgia e Política de Saúde Pública, da Harvard Medical School, enfoca aspectos da prática médica dividida em duas visões: uma, em que o profissional é visto como um herói, por conta de atuações de resgate da vida, enquanto cirurgião, intervencionista, intensivista, atuando nos primeiros socorros, etc.
 A outra, na qual o médico se propõe a cuidar de pessoas de faixa etária avançada, sendo que, nos tempos atuais, essa clientela passou a ser uma fatia muito grande no topo da pirâmide demográfica. Significa que, enquanto nos anos sessentas apenas 6 % da população mundial tinha mais que sessenta anos, nos dias atuais esse contingente passa dos 20 %.
E é o que se verifica no dia a dia: as UTIs, pronto socorros e ambulatórios recebendo cada vez mais pacientes de idade avançada, porque “fugiram” da sucumbência precoce típica dos séculos passados. É um resultado lógico do avanço da própria medicina e da qualidade de vida gozada pela gente de nosso tempo, em todo o planeta.
Daí surgir um tipo de medicina chamada incrementalista, que não é a de resgaste das vidas, mas, sim, aquela que busca, no idoso, na criança ou no jovem com mal crônico, o constante reparo das deficiências orgânicas e funcionais, cuidando de detalhes secundários, porém, “incrementando” qualidade de vida em todas as esferas.
Quem são os “heróicos”? São os cirurgiões, os intervencionistas, intensivistas, socoristas (primeiros cuidados), etc. Eos incrementalistas ? São os clínicos gerais, os pediatras, infectologistas, reumatologistas, etc. Tudo isso na visão do autor Gawande.
Como reflexo desse formato de atuação, vem na esteira, a prevenção de situações mais gravosas que passariam à atuação do outro tipo de médico, alternativo à medicina de resgaste. Gawande compara com um exemplo de ponte que liga 2 estados americanos que ruiu, em 1.967, matando 46 pessoas, porque o tempo passou e faltou revisão da capacidade da mesma. Como consequência, 70 % de todas as 650.000 pontes do país tiveram suas estruturas reavaliadas. Analogamente, as pessoas necessitam de revisões mais cuidadosas ao longo da vida.
Aspectos interessantes advêm desses tipos comportamentais de atuação. Um deles é o resultado das compensações honorárias que o profissional coleta numa e noutra missão: o de resgate ganha muito mais que o incrementalista. Por evidente lógica de que, salvando uma vida, consegue ter (e ser) mais “valorizado” o seu trabalho, então, concebido como um ato de heroísmo.
Outro aspecto é a necessidade do médico ficar familiarizado com seu elenco de pacientes, permitindo facilmente diagnosticar e tratar das queixas que aparecem no decorrer da vida do idoso, do jovem carente e das crianças. Isso é algo que está na essência da que é hoje chamada Medicina da Família.
No entanto, Atul Gawande, que confessa, mesmo assim, continuar preferindo seu ego massageado pela atuação como cirurgião, chama atenção para a enorme necessidade de se passar a investir na formação de profissionais “incrementalistas”.
O autor relata seu testemunho, conhecendo serviços específicos, o quanto é possível conseguir satisfação profissional e gratidão do cidadão assistido,  numa atividade diária com montante de  resoluções relativamente mais produtivo do que o volume de vidas resgatadas.
Medidas necessárias para atender esse novo perfil de atuação, em nível de saúde pública, será uma política governamental de incentivo à adesão de médicos com essa missão de cuidar do idoso, do jovem carente e do paciente crônico. Sem fugir da lógica de estabelecer remunerações compensatórias pela missão, que é especial. Até porque ela consome tempo adicional para esse tipo de atenção.
A outra necessidade essencial, além de remuneratória, será vocacionar os jovens profissionais para essa característica de assistência, em que um senso de amizade e de boa relação, que já é atributo próprio para a profissão, deverá ser mais acentuado no sentido de vincular ao paciente uma segurança maior que o mesmo sente trazida por esse tipo de cuidado chamado incremental. Verdadeiro senso de fraternidade acrescido à atividade científica da medicina.
Está aí um grande desafio. Hoje vivemos a gravíssima situação de existirem no Brasil, mais de 300 faculdades de medicina, sendo a grande maioria incapaz de prover a formação ideal. Objetivamente, demonstrou o último exame de avaliação da formação básica, realizado pelo CREMESP, que menos da metade dos examinados têm competência para o exercício da medicina básica.
Outro aspecto é que teremos maciça maioria de jovens que pagaram muito caro para se formarem, ao longo de 6 a 12 anos, naturalmente sequiosos para buscarem, rápida e ansiosamente, o chamado pay back, que é a tradução de retorno do investimento.
Só que a curva de atuação do médico classicamente mostra que seu nome, sua fama, seu prestígio, quando cultivados honesta e eticamente, demanda longo tempo para fazer recuperar a compensação financeira trazida pela profissão. Isto é, as coisas não são tão rápidas assim. Mesmo sendo a profissão liberal que, sem sombra de dúvida, ainda garante o melhor resultado financeiro.
Isso desenha um gargalo do qual fica difícil escapar. Ou seja: medicina exigindo um perfil de cuidadores dedicados (medicina incremental), tradicionalmente mal remunerada (dentro da medicina), deparando-se com jovens formados, ansiosos por um ganho rápido, que certamente colidirá com um perfil que estará distante do perfil ideal de paciência para especializar-se e exercer o modelo incremental que é, caracteristicamente, mais trabalhoso, embora menos rebuscado em termos de habilidades técnicas pessoais.
Há uma esperança em algo que o governo já está estimulando: criar e  ampliar vagas para Residência em Medicina de Família. Outro fator contributivo para essa tendência é que não há vagas suficientes para absorver pretendentes às áreas consideradas de “medicina heróica”, daí estando forçada a busca da nova modalidade.
No entanto, preocupa uma característica típica de nosso Brasil. Total falta de planejamento para suprir o setor, denotada na volúpia de criar escolas médicas, fazendo demagogia política, sem cuidar da sequência de preparação profissional adequada, gerando problemas em cima de problemas, antes que soluções necessárias, indispensáveis e indisponíveis.
Promove aquilo que alguém um dia disse: “O médico logo será comparado ao sal de cozinha: branco, barato e encontrável em qualquer esquina”. Certa vez, constrangidamente, relatei isso. Hoje acrescentaria: ...e um “produto” que poderá ser prejudicial à saude.”
                                                                É, lamentávelmente, uma triste realidade.
 Dr. Fauze José Daher
Diretor Clínico da Santa Casa de Barretos
Gastro Cirurgião Videolaparoscopista 
Mestre em Ciências pela Escola Paulista de Medicina – UNIFESP

Advogado